As tentativas de destruição da ponte sobre o rio Cuito

Em 1985 o Governo angolano decide restabelecer a soberania sobre a região do Sudeste angolano ocupada pela UNITA. Devido à vastidão do território do Cuando Cubango e às dificuldades que se colocavam na ligação às tropas, em 1978 a direcção do MPLA decidiu abandonar aquela região. A África do Sul e a CIA aproveitaram para ali instalar a base da Jamba.

Reforçadas e decididas a repor a soberania, as FAPLA lançam em 1985 a Operação “Congresso II”, com  um ataque a Mavinga, principal base logística da UNITA. A ofensiva foi lançada do Cuito Cuanavale e apanhou a UNITA desorganizada. O avanço das Forças Armadas de Angola foi apenas interrompido pela intervenção sul-africana quando as tropas angolanas estavam a aproximadamente 10 quilómetros de Mavinga.
Em resposta, no ano seguinte, forças especiais sul-africanas desencadearam a Operação “Drosdy” e destruíram as reservas de combustível no Porto do Namibe. Mas  a acção da FAPLA para tomar Mavinga e a Jamba e repor a autoridade do Estado angolano na região prosseguiu nos anos seguintes.

Barreira intransponível


Há uma semana, a 23 de Março deste ano, 28 anos depois da derrota das forças do regime de apatheid e seus aliados na Batalha do Cuito Cuanavale, foi inaugurada a nova estrutura de uma ponte que decidiu um dos maiores acontecimentos militares de África.
Na presença do ministro de Defesa Nacional, João Lourenço, do chefe do EMG das FAA, general de Exército Nunda, e da embaixadora de Cuba em Angola, Gizela Garcia Rivera, um oficial superior angolano, general Feijó, descreveu os factos que rodearam o esforço sul-africano e da UNITA destinado a destruir a ponte sobre o rio Cuito e  tornar inactiva a pista de aviação do Cuito Cuanavale.
É com base nesse relato que contamos a história da ponte sobre o rio Cuito.

Entre dois rios


A pequena vila do Cuito Cuanavale, com aeródromos e armazéns militares, situa-se abaixo da confluência dos rios Cuito e Cuanavale, na margem Leste. Desde as primeiras décadas do século passado, o acesso para Leste era feito por uma ponte de sentido único, sem outros pontos de passagem na área. Os rios são navegáveis e em alguns pontos chegam a atingir a profundidade de 15 metros.  Quem já percorreu as suas margens, retrata uma beleza única, recortada por plantas e animais de traço nunca visto.
Em 1986, na guerra de desestabilização contra Angola e a “Linha da Frente”, o comando superior sul-africano decidiu então destruir essa ponte. Se o conseguisse, provocaria uma interrupção no apoio logístico às FAPLA e limitaria o efeito de qualquer força que ainda não estivesse estacionada a Leste.
A tropa sul-africana recebe a missão de realizar acções de reconhecimento e operação com vista à destruição da ponte. A UNITA fornece os meios de infiltração e de retirada. E numa reunião com oficiais superiores da UNITA em Mavinga, Jonas Savimbi garante o seu apoio total, enviando uma mensagem ao comandante da operação, Rudman, dizendo: “A nossa região precisa de convicções firmes para que o nosso povo permaneça livre. O preço é alto. Vamos enfrentar os desafios das nossas vidas”.
Um plano de operação é feito para a UNITA. A cooperação com a RSA e a assistência recebida são “excelentes”. A UNITA realiza o ataque que prevê desmantelar alguns pólos que protegiam a ponte do Cuito. A operação foi conduzida pelo chefe da equipa de engenheiros da UNITA, capitão Chicucuma, com uma equipa de 45 homens.  O plano de ataque da UNITA era engenhoso, mas não teve sucesso.

Primeira tentativa


Em Maio de 1987, um 4.º Regimento de Reconhecimento das SADF recebe então ordens para realizar um estudo sobre a possibilidade de destruir a ponte sobre o rio Cuito, um “elemento vital” no apoio logístico às unidades das FAPLA que se movimentam para Leste do rio.
Uma equipa de dois homens realiza reconhecimento e, depois de estudado o relatório, fica decidido que a possibilidade de destruição da ponte é exequível. Na etapa de planeamento, chegam à conclusão que o Exército angolano sofreria maiores danos se a ponte fosse destruída quando as tropas angolanas fossem movimentadas para Leste da ponte para começarem uma nova ofensiva.
Uma equipa de nadadores de combate, composta por 12 operadores do 4.º Regimento de Reconhecimento das SADF, muda-se para Fort Foot, no Rundu, para treinos e preparativos para a Operação. Entre les estavam o major Fred Wilke, os sargentos Antonie Beukman, Gerhardus Heydenrych, Richard Burt Brent, Jacobus de Wet, Filipo Herbst, Henk Liebenberg, Adriano Manuel, Johannes Oettle, Johannes van der Merwe, Leslie Wessels e o cabo Pieter van Niekerk. Na noite de 25-26 de Agosto de 1987, o grupo equipado com canoas “Klepper” de dois lugares e equipamentos de homens-rãs é transportado com helicópteros “Puma” para Norte do Cuito Cuanavale, à 70 quilómetros, nas margens do rio Cuito infestado de crocodilos, muito frequentes, e que se encontrava na fase de cheias. Era necessário manter uma distância considerável do alvo para garantir que os postos avançados das FAPLA não ouvissem o barulho dos helicópteros. Depois de remarem durante três horas, a equipa esconde as canoas e descansa durante o resto do dia. Quando a noite caiu, continuaram para Sul, nadando e seguindo a corrente.
O major Fred Wilke e o seu companheiro (Phillipus Herbs) depararam-se com obstáculos submersos colocados pelas FAPLA na área que conduzia ao alvo. Ignorando os perigos, continuaram a nadar em direcção à ponte. Foram descobertos por patrulhas das FAPLA quando estavam em águas rasas e são alvejados com fogo de armas ligeiras e com granadas. O sul-africano Fred, ferido no braço direito, é salvo de morte pelo seu companheiro que o arrasta para o fundo do rio e nada com ele, saindo da área da ponte para uma outra de segurança.
Os sargentos van der Merwe e Manuel também se depararam com obstáculos submersos e, pelo metralhar de armas ligeiras e pelas explosões de granadas de frente, ficam cientes de que as FAPLA foram alertadas da presença invasora. Os dois sargentos conseguem evitar os postos avançados das FAPLA, nadando no fundo do rio.
Ignorando o perigo das cargas sensíveis que transportavam, susceptíveis de serem activadas pela onda de choque das granadas lançadas pelos militares da FAPLA, armam-nas, colocam-nas na ponte e afastam-se sem serem vistos.
Esta parte do grupo mergulhador retira-se, mas a vigilância das FAPLA localizou os sargentos Heydenrych e Pieter van Niekerk, pelo barulho de uma mochila que caiu à água. O fogo é concentrado e eles mergulharam para o fundo. As bengalas estouram no ar, iluminando o rio, ficando os invasores claramente visíveis, enquanto nadam em direcção à ponte.
Para todo o grupo tornou-se muito perigoso colocar as cargas com precisão por causa das ondas de choque das explosões das granadas e, provavelmente, iriam colocá-las fora do lugar. Em vez disso, depositaram-nas o mais perto possível da ponte. Depois, retiraram-se. Chegados ao ponto de reencontro, viram que estavam lá todos excepto os sargentos Beukman e Leslie Wessels.
Duas horas depois do amanhecer chocaram com uma patrulha das FAPLA que abriu fogo. Os sargentos Heydenrych, Burt, Liebenberg e Van der Merwe ripostaram ao fogo com as suas pistolas, mas tiveram de mergulhar para evitar o contacto. Mas tiveram outro problema. Enquanto os outros faziam cobertura, o major Wilke foi atacado por um crocodilo. O réptil prende as suas garras em torno de uma barbatana e rasga-a. Mas apesar das feridas e do choque do ataque do crocodilo, o major Wilke continua até ao ponto de recolha, onde recebeu a primeira assistência médica.

Dispersos na mata


Os dois que ficaram para trás, os sargentos Beukman e Wessels, tiveram de passar a ponte e nadaram para tão longe quanto puderam, à jusante, antes do raiar do sol. Durante o dia houve muita actividade das FAPLA ao longo das margens do rio e por isso acoitaram-se numa palhota de capim durante o resto do dia. Quando anoiteceu, continuaram a nadar, mas quando chegaram ao primeiro ponto de encontro os outros já haviam saído.
Quando se sentiram seguros, atravessaram terreno firme e foram directos para o ponto de encontro de emergência. Tiveram de nadar à superfície para a conservação do oxigénio e foram atacados também por um crocodilo enorme que prendeu as suas grandes mandíbulas no sargento Beukman e arrastou-o para o fundo do rio. Segurando-o com as suas garras terríveis, o réptil começou a sacudi-lo para trás e para frente sob a água, tentando afogá-lo. Só conseguiu safar-se quando desembainhou a faca de combate e esfaqueou o crocodilo repetidamente nos olhos e na área macia sob o pescoço. Depois de ter escapado ao jacaré, os dois conseguiram chegar ao ponto de recolha, onde ambos foram retirados de helicóptero.

Danos da primeira tentativa


Nessa primeira tentativa de destruir a ponte sobre o rio Cuito, as SADF provocaram danos severos à ponte, mas não a conseguiu demolir. Enquanto a ponte aguardava por reparação de emergência da importante engenharia das FAPLA, que tiveram nessa altura um papel de verdadeiros heróis, o movimento de abastecimento das tropas angolanas através do rio Cuito foi reduzido e o transporte de tropas feito de helicóptero e por uma balsa.
A ponte ficou fechada à passagem de tanques e veículos pesados durante grande parte da campanha que se seguiu, mas a eficácia do ataque foi assegurada pela eficiência dos equipamentos russos de travessia, do tipo “TMM”, que na sua maioria resolveram os problemas das FAPLA de travessia dos rios.
Os resultados dos ataques dos crocodilos desencadearam nas SADF um programa urgente de pesquisa para encontrar um repelente de crocodilos, mais tarde alargado à descoberta de algo eficaz contra tubarões, muito frequentes nos mares do Cabo da Boa Esperança.

Segunda tentativa

Nos dias 25 e 26 de Agosto de 1987 foi desencadeada a segunda operação pelas Forças Especiais sul-africanas, denominada “Operação Coolidge”, que visava novamente atrasar o avanço das FAPLA para a Jamba, durante a operação “Saudemos Outubro” e impedir, mais tarde, o abastecimento em material e víveres às tropas nacionais angolanas.
No dia 5 de Setembro, o comandante do 32.º Batalhão “Búfalo” organiza uma nova unidade, mais numerosa, que passou a ser conhecida como a 20.ª Brigada de Infantaria das SADF. Uma das primeiras missões, levadas a cabo pelas forças das SADF, foi tentar a destruição da ponte no início de Setembro de 1987.

Terceira tentativa

No dia 25 de Dezembro de 1987, entre às 18h30 e as 21h50, as tropas das SADF efectuaram um intenso bombardeamento de G-5 contra a ponte, danificando-a parcialmente. No entanto, antes da meia-noite, as SADF foram informadas por um posto de observação de que a ponte estava a ser novamente utilizada por veículos das FAPLA.
Os sapadores das FAPLA tentaram reforçar a ponte durante a noite, através do desdobramento de uma ponte “TMM”, pela parte da ponte mais danificada. Mas a TMM caiu ao rio e teve de ser recuperada rapidamente para evitar que a ponte ficasse encerrada e se registasse uma concentração de veículos que daria oportunidade à artilharia sul-africana de flagelar no dia seguinte.
Durante todo dia 26 de Dezembro de 1987, a ponte sobre o rio Cuito foi atingida com 48 projécteis (!) de G-5. Mas no dia 27 de Dezembro, chegaram más notícias para as SADF, pois as FAPLA haviam conseguido reparar a ponte sobre o rio Cuito a um nível suficiente para ser usada novamente na travessia de camiões pesados e de tanques. Isto significava que as FAPLA seriam capazes de continuar a reorganização e o reforço das Brigadas estacionadas a Leste do Cuito e que batalhavam com bravura pela defesa da soberania de Angola.
Os flagelamentos não conseguiram produzir os efeitos esperados pelas SADF, o que lhes criou uma enorme aflição que se veio a reflectir na derrota final.
Com a ponte do rio Cuito novamente em funcionamento, os canhões G-5 das SADF concentraram-se sobre ela ao longo do dia 27 de Dezembro. Os canhões continuaram a desferir golpes contra o tráfego que se fazia sobre a ponte, atirando para o rio um camião angolano. O chefe da engenharia das FAPLA, coronel Jorge, em determinado momento, teve de correr enquanto por trás dele rebentavam os potentes projectéis G-5.

Quarta tentativa


No dia 3 de Janeiro de 1988,  aviões da SAAF (Força Aérea Sul-africana) levantaram voo, a partir de Grootfontein, com a missão de destruir a ponte sobre o rio Cuito, já decisiva para as FAPLA no reforço das capacidades de defesa do dispositivo estacionado na parte Leste do Cuito Cuanavale. No percurso, ao se aperceberem de que a aviação das FAPLA estava no ar, decidiram regressar. A SAAF reuniu-se para preparar cuidadosamente a missão que iria permitir-lhe atacar a ponte apesar da presença constante dos MiG. Às 11h40, o golpe foi lançado outra vez.  O ataque acabou por acontecer às 12h31, com uma “bomba inteligente” que embateu junto à ponte do Cuito.  A explosão fez-se a uns 20 metros de distância. As FAPLA pensaram que tivessem perdido a ponte, atingida por um explosivo carregado por um RPV (Remote PHP Vulnerability Scanner, pioneiros dos actuais DRONE), e assim reportaram o incidente a Menongue.
Aquilo que era visto como um problema que as FAPLA enfrentariam – o esforço maior de reparar a ponte, o que constituiria uma desvantagem em relação à artilharia sul-africana – acabou por não ser, porque as unidades angolanas manobraram com os barcos de travessia e com o equipamento táctico de pontes para manter as brigadas abastecidas na parte Leste do rio.

Quinta tentativa

Na noite de 29 Fevereiro para 1 de Março de 1988, durante o 2.º ataque ao Tumpo, as SADF decidiram lançar um assalto com tanques contra a ponte. O novo ataque foi planeado para ser executado em cinco fases, do reconhecimento à destruição da ponte e  retirada. 
A força principal para este ataque incluia o 61.º Batalhão Mecanizado, de Mike Muller, célebre derrotado da Batalha do Cuito Cuanavale. As FAPLA mantinham a sua testa-de-ponte no planalto oriental.A 8 de Março, as unidades naquela zona estavam a ser reabastecidas através da ponte.
Os sul-africanos tinham o objectivo de “destruir as unidades das FAPLA à Leste do Cuito ou obrigá-las a atravessar o rio” e “assim que a testa-de-ponte fosse tomada, a ponte seria destruída”, mas o propósito não foi conseguido. Para além de não ter tomado a testa-de-ponte, o inimigo não conseguiu destruir a ponte.

Área em desminagem

A 23 de Março de 1988, as SADF realizaram a Operação “Packer” (Empacotador), um último ataque ao Tumpo para obrigar as FAPLA a abandonarem o seu ponto de resistência a Leste da ponte sobre o rio Cuito.
O desfecho desta operação foi favorável às FAPLA. Os campos de minas implantados na linha dianteira da defesa, o golpe poderoso e quadriculado da artilharia e a inundação dos eixos de aproximação das forças sul-africanas pelo transbordante rio Tumpo, começaram por limitar os movimentos das SADF, obrigando-as a imobilizar-se e a recuar das linhas de combate, à mercê do poderoso dispositivo de defesa das tropas angolanas, que mantiveram a integridade da cabeça-da-ponte sobre o rio Cuito.
A Operação “Displace” (Remover) decorreu de 30 de Abril a 29 de Agosto de 1988, data em que os últimos soldados das SADF se retiraram de Angola, nos termos do Acordo Tripartido entre Angola, África do Sul e Cuba, assinado com mediação dos Estados Unidos e supervisão da ONU.
A “Displace” foi a última acção feita para impedir que as FAPLA se reorganizassem e lançassem uma nova ofensiva contra a Jamba e consistiu na implantação de minas em quase todas as travessias sobre os rios Cuito, Cuanavale e Chambinga. Trata-se de uma área que estava para começar a ser desminada em 2016 e continuar para além de 2017.

Jornal de Angola

30 de Março de 2016

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